quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

.....QUANDO O ORISÁ ESCOLHE........

Quando uma pessoa é escolhida pelo orixa, ele traz uma marca que não passa desapercebida é igual a um perfume bom que alguém passa e exala e que muitas vezes não se comenta.



Mas a curiosidade nos faz querer saber o nome da fragrância. Assim somos nós, quando o orixa nos marca com algo especial com o cargo de zelador muitos querem saber o segredo, e o porque de ter sido você ? ai logo vão querer copiar, mas não dá! O segredo está no coração do orixa e existem detalhes em você que é só seu. E o preço que se paga por ser escolhido pelo orixa muitas vezes é dolorido,têm falta de compreensão carregada de inveja e muitas vezes com calúnia e falta de fé. E o inimigo vai tentar usar de armas pra te neutralizar, mas isto não adianta diante da grandeza do orixa na sua vida se o selo de fidelidade dele estiver em nós zeladores honestos, corretos e amigos, nós vencemos tudo: seja sempre grato por este amor que o orixa deposita em você e que ele esteja comigo por hoje e sempre axé.





domingo, 5 de dezembro de 2010

...E OS CABOCLOS????....































... Reginaldo Prandi






> A dança dos caboclos










Artigos, teses e publicações


























A dança dos caboclos : uma síntese do Brasil segundo os terreiros afro-brasileiros
















Aprendemos na escola que a população brasileira foi formada pelos europeus colonizadores, que se mesclaram com os indígenas que aqui já viviam antes da chegada dos portugueses e com os africanos trazidos pelo escravismo. Somos ao mesmo tempo brancos, índios e negros. São essas as nossas raízes, às quais mais tarde vieram se juntar povos do Oriente Próximo, do Extremo Oriente e de outras partes do mundo. Somos um povo mestiço, com uma cultura mestiça, mas o assumir dessa identidade só veio a ganhar alguma legitimidade por volta dos anos 20 do século passado, época, inclusive, em que se formaram duas importantes marcas dessa ascendência: o samba, no universo da música popular brasileira, e a umbanda, síntese da diversidade religiosa afro-brasileira.






Negros e índios: impossível pensar o Brasil sem essas duas origens. Suas marcas estão na constituição física do brasileiro e também na sua cultura, sobressaindo-se a música e a religião, mas incluindo também dimensões como língua, culinária, estética, valores sociais e estruturas mentais. Mas é nas religiões afro-brasileiras que estão registradas a presença decisiva e a diversidade da contribuição negra.






Durante quase quatro séculos, negros africanos foram caçados e levados ao Brasil para trabalhar como escravos. Separados para sempre de suas famílias, de seu povo, do seu solo (de fato apenas alguns poucos conseguiram retornar depois da abolição da escravidão), os africanos foram aos poucos se adaptando a uma nova língua, novos costumes, novo país. Foram se misturando com os brancos europeus colonizadores e com os índios da terra, formando, como disse, a população brasileira e sua cultura, como também aconteceu em outros países da América. Muitos foram os povos africanos representados na formação brasileira, os quais podem ser classificados em dois grandes grupos lingüísticos: os sudaneses e os bantos (Prandi, 2000).






São chamados sudaneses os povos situados nas regiões que hoje vão da Etiópia ao Chade e do sul do Egito a Uganda, mais o norte da Tanzânia. Seu subgrupo denominado sudanês central é formado por diversas etnias que abasteceram de escravos o Brasil, sobretudo os povos localizados na região do Golfo da Guiné, povos que no Brasil conhecemos pelos nomes genéricos de nagôs ou iorubás (mas que compreendem vários grupos de língua e cultura iorubá de diferentes cidades e regiões), os fons ou jejes (que congregam os daomenaos e os mahis, entre outros), os haussás, famosos, mesmo na Bahia, por sua civilização islamizada, e outros grupos que tiveram importância menor ou nenhuma na formação de nossa cultura, como os grúncis, tapas, mandingos, fantis, achantis e outros não significativos para nossa história. Para enfatizar a especificidade de cada uma dessas culturas ou subculturas, talvez seja suficiente lembrar que duas das cidades iorubás ocupam papel especial na memória da cultura religiosa que se reproduziu no Brasil: Oió, a cidade de Xangô, e Queto, a cidade de Oxóssi, além de Abeocutá, centro de culto a Iemanjá, e Ilexá, a capital da sub-etnia ijexá, de onde são provenientes os cultos a Oxum e Logum Edé. O candomblé jeje-nagô da Bahia, o batuque do Rio Grande do Sul, o tambor-de-mina do Maranhão e o xangô de Pernambuco são heranças brasileiras desses povos.






Os bantos são povos da África Meridional que falam entre setecentas e duas mil línguas e dialetos aparentados, estendendo-se para o sul, logo abaixo dos limites sudaneses, até o cabo da Boa Esperança, compreendendo as terras que vão do Atlântico ao Índico. Os bantos trazidos para o Brasil eram falantes de várias dessas línguas, sobressaindo-se, principalmente, os de língua quicongo, falada no Congo, em Cabinda e em Angola; o quimbundo, falado em Angola acima do rio Cuanza e ao redor de Luanda; e o umbundo, falada em Angola, abaixo do rio Cuanza e na região de Benguela. A importância dos grupos falantes dessas três línguas na formação do Brasil pode ser aferida pela quantidade de termos que a língua portuguesa aqui falada deles recebeu (Castro, 2001), além de outras contribuições nada desprezíveis, como a própria música popular brasileira. Na esfera das religiões afro-brasileiras, a participação dos bantos foi fundamental, pois é da religiosidade desses povos ou sob sua influência decisiva que se formou no Brasil o candomblé de caboclo baiano e outras variantes regionais de culto ao antepassado indígena, como o catimbó de Pernambuco e da Paraíba, que mais tarde vieram a se reunir na formação da umbanda e que também constituíram uma espécie de contrapartida brasileira ao panteão das divindades africanas cultuadas nos candomblé, no xangô, no batuque e no tambor-de-mina.










II






As diferentes etnias africanas chegaram ao Brasil em distintos momentos, predominando os bantos até o século XVIII e depois os sudaneses, sempre ao sabor da demanda por mão-de-obra escrava que variava de região para região, de acordo com os diferentes ciclos econômicos de nossa história, e do que se passava na África em termos do domínio colonial europeu e das próprias guerras inter-tribais exploradas, evidentemente, pelas potências coloniais envolvidas no tráfico de escravos. Nas últimas décadas do regime escravista, os sudaneses iorubás eram preponderantes na população negra de Salvador, a ponto de sua língua funcionar como uma espécie de língua geral para todos os africanos ali residentes, inclusive bantos (Rodrigues, 1976). Nesse período, a população negra, formada de escravos, negros libertos e seus descendentes, conheceu melhores possibilidades de integração entre si, com maior liberdade de movimento e maior capacidade de organização. O cativo já não estava preso ao domicílio do senhor, trabalhava para clientes como escravo de ganho, e não morava mais nas senzalas isoladas nas grandes plantações do interior, mas se agregava em residências coletivas concentradas em bairros urbanos próximos de seu mercado de trabalho. Foi quando se criou no Brasil, num momento em que tradições e línguas estavam vivas em razão de chegada recente, o que talvez seja a reconstituição cultural mais bem acabada do negro no Brasil, capaz de preservar-se até os dias de hoje: a religião afro-brasileira.






Assim, em diversas cidades brasileiras da segunda metade do século XIX, surgiram grupos organizados que recriavam no Brasil cultos religiosos que reproduziam não somente a religião africana, mas também outros aspectos da sua cultura na África. Nascia a religião afro-brasileira chamada candomblé, primeiro na Bahia e depois pelo país afora, tendo também recebido, como já disse, nomes locais, como xangô em Pernambuco, tambor-de-mina no Maranhão, batuque no Rio Grande do Sul. Os principais criadores dessas religiões foram negros das nações iorubás ou nagôs, especialmente os provenientes de Oió, Lagos, Queto, Ijexá, Abeocutá e Iquiti, e os das nações fons ou jejes, sobretudo os mahis e os daomeanos. Floresceram na Bahia, em Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Rio Grande do Sul e, secundariamente, no Rio de Janeiro.










III






Simultaneamente, por iniciativa de negros bantos, surgiu na Bahia uma religião equivalente às dos jejes e nagôs, conhecida pelos nomes de candomblé angola e candomblé congo. A modalidade banta lembra muito mais uma transposição para as línguas e ritmos bantos das religiões sudanesas do que propriamente cultos bantos da África Meridional, tanto em relação ao panteão de divindades e seus mitos como no que respeita às cerimônias e aos procedimentos iniciáticos, mas tem características que fizeram dela uma contribuição essencial na formação do quadro religioso afro-brasileiro: o culto ao caboclo. Ora, os bantos tinham chegado muito tempo antes dos iorubás e dos fons, estavam bastante adaptados aos costumes predominantes no país, falavam a língua portuguesa e tinham assimilado o catolicismo. Mas, num país de escravos, ainda eram considerados africanos, como todos os negros e mestiços, e seu lugar na sociedade, por isso, era à margem; sua identidade ainda era africana. Em outras palavras, eram contraditoriamente brasileiros e africanos ao mesmo tempo. Como africanos meridionais que eram, suas remanescentes tradições os orientavam no sentido de cultuar os antepassados, antepassados que na África banta estavam fixados na terra, de modo que cada aldeia tinha seus próprios ancestrais como parte integrante daquele território geográfico e que usualmente não se deslocavam para outros lugares. Como brasileiros que também já eram, tinham consciência de uma ancestralidade genuinamente brasileira, o índio. Da necessidade de cultuar o ancestral e do sentimento de que havia uma ancestralidade territorial própria do novo solo que habitavam, os bantos e seus descendentes criaram o candomblé de caboclo, que celebrava espíritos dos índios ancestrais (Santos, 1995; Prandi, Vallado e Souza, 2001).






Apesar de os bantos estarem no Brasil havia muito mais tempo, indícios históricos nos levam a crer que é tardia a formação de um candomblé banto de culto a divindades africanas, o qual teria surgido apenas quando os candomblés de orixá e de voduns já estavam organizados ou se organizando. Embora todos os negros e mestiços fossem considerados como iguais, na medida em que ocupavam na sociedade branca posição oficialmente subalterna e marginalizada, as identidades étnicas estavam preservadas nas irmandades religiosas católicas, que reuniam em igrejas e associações específicas os diferentes grupos africanos étnico-linguístico. Pois quando nagôs e jejes reunidos nas irmandades católicas (Silveira, 2000) refizeram no Brasil suas religiões africanas de origem, os bantos os acompanham. Pelas razões que já apontei, sua religião de inquices (divindades ancestrais bantas) teve uma reconstituição muito mais problemática, obrigando-se a empréstimos sudaneses nos planos do panteão, dos ritos e dos mitos.






No campo religioso foi, portanto, dupla a contribuição banta originada na Bahia: o candomblé de caboclo e o candomblé de inquices denominado angola e congo — duas modalidades que se casariam num único complexo afro-índio-brasileiro, povoando, a partir da década de 1960, praticamente o Brasil todo de terreiros angola-congo-caboclo.






Não foi, entretanto, só na Bahia que surgiram os cultos das entidades caboclas. Onde quer que tenham se formados grupos religiosos organizados em torno de divindades africanas, podiam também ser reconhecidos agrupamentos locais que buscavam refúgio na adoração de espíritos de humanos. Esses cultos de espíritos ganharam, evidentemente, feições locais dependentes de tradições míticas ali enraizadas, podendo estas serem mais acentuadamente indígenas, de caráter mais marcado pelo universo cultural da escravidão, ou mesmo mais próximas da mitologia ibérica transplantada para o Brasil colonial. Em cada lugar surgiram cultos a espíritos de índios, de negros e de brancos. Essa tendência foi muito reforçada pela chegada ao Brasil, no finalzinho do século XIX, de uma religião européia de imediata e larga aceitação no Brasil: o Espiritismo kardecista.






Em cada uma dessas denominações religiosas caboclas, a concepção dos espíritos cultuados também variou bastante. Na Bahia, por exemplo, o caboclo é o índio que viveu num tempo mítico anterior à chegada do homem branco, mas um índio que conheceu a religião católica e se afeiçoou a Jesus, a Maria e a outros santos; um índio que viveu e morreu neste país — este é o personagem principal do candomblé de caboclo, que, com o tempo agregou outros tipos sociais, sobretudo os mestiços boiadeiros do sertão. A proximidade com religiões indígenas é atestada pela presença ritual do tabaco, tabaco que, antes da chegada das multinacionais do fumo, foi uma das grandes riquezas da Bahia, antigo centro nacional da indústria fumageira e importante produtor de charutos. O charuto é até hoje um símbolo forte dos espíritos caboclos.






Na Paraíba e em Pernambuco, os espíritos, que ali se chamam mestres podiam ser espíritos de índios, de brasileiros mestiços ou brancos, entre os quais se destacavam antigos líderes da própria religião já falecidos, os mestres, designação esta que acabou prevalecendo para designar todo e qualquer espírito desencarnado. Essas manifestações também herdaram das religiões indígenas o uso do tabaco, ali fumado com o cachimbo, usado nos ritos curativos, além da ingestão cerimonial de uma beberagem mágica preparada com a planta da jurema. Catimbó e jurema, os nomes pelos quais essa modalidade religiosa é conhecida resultam desses dois elementos. Catimbó é provavelmente uma deturpação da palavra cachimbo, e jurema, o nome da planta e da sua beberagem sagrada (Bastide, 2001; Brandão e Rios, 2001).






Mais ao norte, no Maranhão e no Pará, os espíritos cultuados são personagens lendários que um dia teriam vivido na Terra mas que, por alguma razão, não conheceram a morte, tendo passado da vida terrena ao plano espiritual por meio de algum encantamento: são os encantados (Ferretti, 1993 e 2001). Essa tradição de encantamento estava e está presente na cultura ocidental (lembremo-nos nas histórias de fadas, com tantos príncipes e princesas encantados), bem como na mitologia indígena. Os encantados são de muitas origens: índios, africanos, mestiços, portugueses, turcos, ciganos etc. Lendas portuguesas de encantaria, como a história do rei português dom Sebastião, que desapareceu com sua caravela na batalha de Alcacequibir em 1578, em luta contra os mouros, e que os portugueses acreditavam que um dia voltaria, estão vivas nessa religião. A luta dos cristãos contra os mouros, tão cara ao imaginário português, se transformou em mitologia religiosa, mas os turcos da encantaria são agora aliados, não inimigos. Elementos da encantaria amazônica, como as histórias de botos que viram gente e vice-versa; lendas de pássaros fantásticos e peixes miraculosos, tudo isso foi compondo, ao longo do tempo, a religião que se convencionou chamar encantaria ou encantaria do tambor-de-mina, no Maranhão (Prandi e Souza, 2001), e sua vertente paraense (Leacock e Leacock, 1975).






Todas essas formas de cultos nascidas no Brasil, que podemos genericamente chamar de religião dos encantados ou religião cabocla, são religiões de transe. As entidades cultuadas se manifestam em transe no corpo de devotos devidamente preparados para isso, tal como ocorre nos cultos dos orixás, voduns e inquices. Como também se dá no conjunto todo das religiões afro-brasileiras, todas desenvolvem ampla atividade mágico-curativa e de aconselhamento oracular, todas elas são dançantes e sua música é acompanhada de tambores e ritmos de origem africana, embora em modalidades como o catimbó a dança tenha sido adotada mais tarde, nesta provavelmente por influência do xangô. Diferentemente das religiões de orixás, voduns e inquices, as religiões caboclas são, contudo, cantadas em português, o que confirma seu caráter brasileiro e mestiço. Em nenhum momento fica escondida a mistura básica que compõe cada uma delas: América, África e Europa, índio, negro e branco, são estas as fontes indispensáveis da sua constituição. E todas elas são sincréticas com o catolicismo, resultado de um momento histórico, o de sua formação no século XIX, em que ninguém podia ser brasileiro se não fosse igualmente católico. O catolicismo era a religião hegemônica, oficial e a única tolerada em solo brasileiro.






Essas três manifestações afro-índio-brasileiras de culto dos ancestrais da terra — candomblé de caboclo, catimbó-jurema e encantaria de mina — não foram evidentemente as únicas. Muitas outras formas locais puderam ser registradas nas diferentes partes do Brasil, tendo sido algumas delas absorvidas por alguma das formas que lograram melhor se expandir e se perpetuar, ou pela umbanda que se formou mais tarde (Senna, 2001). Outras tantas, embora se mantendo com certa autonomia, ajudaram a compor cosmovisões e panteões de religiões irmãs, como no caso da contribuição da pajelança amazônica (Maués e Macambira, 2001) à encantaria de mina. Por todo lado, diferentes expressões locais da religiosidade cabocla se encontraram, se influenciaram, se fundiram e se espalharam.






Não se pode deixar de notar que essas práticas religiosas acabaram por se justapor aos cultos das divindades africanas, estabelecendo com eles relações de simbiose. O candomblé de caboclo acabou se tornando tributário de candomblé angola e congo; a jurema passou a compor com o xangô, sobretudo o de nação xambá; e a encantaria associou-se ao tambor-de-mina nagô. Os grupos religiosos de culto a orixás e voduns mais comprometidos com raízes sudanesas se mantiveram, pelo menos até um determinado momento e em algumas casas de tradição mais ortodoxa, alheios ao culto caboclo. Era mesmo de se esperar que assim fosse, pois o culto caboclo é, desde sua origem, de natureza mestiça.










IV






Por muito tempo tanto os candomblés de divindades africanas e os cultos que giravam em torno de espíritos brasileiros e europeus (isto é, o candomblé de caboclo, a encantaria de mina, o catimbó ou jurema dos mestres) permaneceram mais ou menos confinados a seus locais de origem. Mas logo no início de sua constituição, com o fim da escravidão, muitos negros haviam migrado da Bahia para o Rio de Janeiro, levando consigo suas religiões de orixás, voduns e inquices e também a de caboclos, de modo que na então capital do país reproduziu-se um vigoroso candomblé de origem baiana, que se misturou com formas de religiosidade negra locais, todas eivadas de sincretismos católicos, e com o espiritismo kardecista, originando-se a chamada macumba carioca e pouco mais tarde, nos anos 20 e 30 do século passado, a umbanda. A umbanda e o samba, símbolo maior da nacionalidade mestiça, constituíram-se mais ou menos na mesma época, ambos frutos do mesmo processo, que caracterizou aqueles anos, de valorização da mestiçagem e de construção de uma identidade mestiça para o Brasil que então se pretendia projetar como país moderno, grande e homogêneo, e por isso mesmo mestiço, o "Brasil Mestiço, onde a música samba ocupava lugar de destaque como elemento definidor da nacionalidade", nas palavras de Hermano Vianna (1995: 20).






A migração para o Rio de Janeiro, que a partir dos anos 50 e 60 seria deslocada para São Paulo, com a nova industrialização, não se resumiu, evidentemente, aos baianos, embora inicialmente eles tenham sido em maior número. Chegava ao Rio gente de todo o Nordeste e também do Norte, cada um trazendo seus costumes, suas crenças, deuses e espíritos. Cultos de mestres e encantados acabaram desaguando fartamente nos terreiros dos caboclos e dos pretos-velhos da chamada macumba carioca, que ia gestando a umbanda numa grande síntese, ali na capital federal da república recém-nascida para onde convergiam as mais diversas manifestações culturais de âmbito regional, e onde essas diferenças regionais e locais foram se apagando para se formar um todo único capaz de representar simbolicamente o Brasil como um todo, como uma única nação, envolvendo todos os seus matizes raciais e as diversas fontes culturais que animavam a construção da brasilidade.






Mais tarde, no final anos 60 e começo dos 70, iniciou-se junto às classes médias do Sudeste a recuperação das raízes de nossa civilização, reflexo de um movimento cultural muito mais amplo, denominado Contracultura. Nos Estados Unidos e na Europa, e daí para o Brasil, esse movimento questionava as verdades da civilização ocidental, o conhecimento universitário tradicional, a superioridade dos padrões burgueses vigentes, os valores estéticos europeus, voltando-se para as culturas tradicionais, sobretudo as do Oriente, e buscando novos sentidos nas velhas subjetividades, em esquecidos valores e escondidas formas de expressão. No Brasil verificou-se um grande retorno à Bahia, com a redescoberta de seus ritmos, seus sabores culinários e toda a cultura dos candomblés. As artes brasileiras em geral (música, cinema, teatro, dança, literatura, artes plásticas) ganharam novas referências, o turismo das classes médias do Sudeste elegeu novo fluxo em direção a Salvador e demais pontos do Nordeste. O candomblé se esparramou muito rapidamente por todo o país, deixando de ser um religião exclusiva de negros, a música baiana de inspiração negra fez-se consumo nacional, a comida baiana, nada mais que comida votiva dos terreiros, foi para todas a mesas, e assim por diante.






Mas o candomblé somente se disseminou pelo Brasil muito tempo depois da difusão da umbanda. Primeiro o Brasil como um todo conheceu e se familiarizou com o culto dos caboclos e outras entidades "humanas" da umbanda, em que os orixás ocupavam uma posição simbólica importante porém menos decisiva no dia-a-dia da religião. Somente mais tarde o candomblé introduziu os brasileiros de todos os lugares numa religião propriamente de deuses africanos. Mesmo assim, os caboclos nunca perderam o lugar que já tinham conquistado. Unidade e diversidade foram preechendo a tessitura nacional da cultura afro-brasileira de âmbito religioso e profano.






Em todos os lugares onde se constituiu o culto ao caboclo, alguns tipos sociais regionais importantes foram incorporados. Foi assim que surgiu, por exemplo, para compor com o tradicional e destemido índio da terra e com o sábio e paciente escravo preto-velho, o caboclo boiadeiro. O boiadeiro é a representação mítica do sertanejo nordestino, o mestiço valente do sertão. É o bravo homem acostumado a lidar com o gado e enfrentar as agruras da seca, símbolo de resistência e determinação. Outro tipo social elevado à categoria de entidade de culto foi o marinheiro. Num país em que as viagens de longa distância, sobretudo entre as capitais da costa, eram feitas por navegação de cabotagem, sendo que todas as novidades eram trazidas pelos navios, o marinheiro era figura muito conhecida e de inegável valor. O marinheiro podia representar ideais de mobilidade e inovação, capacidade de adaptação a cenários múltiplos, amor pela aventura de descobrir novas cidades e outras gentes.






Cada tipo um estilo de vida, cada personagem um modelo de conduta. São exemplos de um vasto repertório de tipos populares brasileiros, emblemas de nossa origem plural, máscaras de nossa identidade mestiça. As entidades sobrenaturais da umbanda não são deuses distantes e inacessíveis, mas sim tipos populares como a gente, espíritos do homem comum numa diversidade que expressa a diversidade cultural do próprio país. Uma vez escrevi que a "umbanda não é só uma religião, ela é um palco do Brasil" (Prandi, 1991: 88). Não estava errado.










V






A aproximação com o kardecismo foi vital para a formação da umbanda em termos ideológicos (Negrão, 1996). Veio do espiritismo de Kardec a concepção de mundo que proporcionou a remodelação das bases éticas, ou aéticas, da religião afro-brasileira, fosse ela africana ou cabocla. Era o nascimento da umbanda, de feições brancas, porém mestiça, uma nova forma de organizar e unificar nacionalmente as tradições caboclas das religiões afro-brasileiras.






Surgida na cidade do Rio de Janeiro, o primeiro cenário da modernização cultural brasileira e contexto de acelerada mudança e diversificação social, a umbanda foi ao mesmo templo plural e uniforme, uma espécie de linguagem comum num diversificado meio social urbano, integrando negros pobres iletrados e brancos escolarizados de classe média baixa. Sua capacidade de reunir em um só panteão entidades espirituais de diversas origens, a fazia uma representante da diversidade, ao mesmo tempo que homogeneizava os espíritos caboclos em função de seus papéis rituais. A umbanda manteve da matriz africana o culto aos orixás, o transe de possessão e o rito dançado, mas seus ritos, celebrados em português, são bem mais simples e acessíveis. Diferente do modelo africano, sua concepção de mundo é fortemente marcada pela valorização da caridade, isto é, o trabalho desinteressado em prol do outro, muito característico do kardecismo, religião de inspiração cristã no plano dos valores.






O controle moral na umbanda se estende sobre a atividade religiosa de tal modo que as entidades espirituais, os espíritos dos mortos, devem praticar a caridade, ajudando seus fiéis e clientes a resolverem toda sorte de problemas. A noção de que os espíritos vêm à Terra para trabalhar é basilar no kardecismo. Igualmente, as práticas de ajuda mágica vão constituir o centro do ritual umbandista. A incorporação da noção cristã de um mundo cindido entre o bem e o mal, associada à necessidade de praticar a caridade, fez com que a umbanda se afirmasse como religião voltada precipuamente para a prática do bem. Todas as forças religiosas deveriam ser canalizadas na prática da caridade. Isso não impediu, no entanto, que junto à prática do bem pelas entidades do chamado panteão do bem ou da direita, surgisse, desde o início, ainda que de modo escondido, uma "face inconfessa" do culto umbandista: uma espécie de universo paralelo em que as práticas mágicas de intervensão no mundo não sofrem o constrangimento da exigência ética, em que todos os desejos podem ser atendidos. Afinal, a herança africana foi mais forte que a moralidade kardecista e impôs a idéia de que todos têm o direito de ser realizados e felizes neste mundo, acima do bem e do mal.






Foi nesse espaço em que a questão do bem e do mal está suspensa que a umbanda construiu um novo modelo de entidade espiritual denominado exu, freqüentemente associado ao diabo dos cristãos. Os exus-diabos da quimbanda na verdade nem são o demônio cristão nem o orixá Exu do candomblé africano. São espíritos de seres humanos cujas biografias terrenas foram plenas de práticas anti-sociais. É nesse modelo que todas os personagens de moralidade questionável, como as prostitutas e os marginais, são acomodados. Para resumir, o bem conta com entidades do bem, que são os caboclos, os pretos-velhos e outros personagem cuja mitologia fala de uma vida de conduta moralmente exemplar (Concone, 2001). São as entidades da direita. Os de má biografia pertencem à esquerda, não se constrangem em trabalhar para o mal, quando o mal é considerado incontornável. Formam as fileiras dos exus e suas contrapartidas femininas, as pombagiras (Prandi, 2001). Compõem com outros tipos sociais já referidos uma espécie de mostruário plural das facetas possíveis do brasileiro comum. Para não integrar os exus e pombagiras no mesmo espaço das entidades da direita, em que se movimentam os praticantes do bem, a umbanda os reuniu num espaço à parte, num culto que por muitas décadas foi mantido subterrâneo, escondido e negado, a chamada quimbanda. Tipos anti-sociais e indesejáveis sim, mas excluídos não — afinal, cada um com sua espiritualidade e sua força mágica nada desprezível. A umbanda não exclui ninguém, na busca de uma síntese para o Brasil nada pode ser deixado de fora.






No panteão das entidades da esquerda, as mulheres ganharam um lugar especial. As religiões tradicionais sempre trataram as mulheres como seres perigosos, voltadas para o feitiço, para o desencaminhamento dos homens, fontes de pecado e perdição. É o que nos conta o mito bíblico judaico-cristão de Eva e toda a tradição iorubá das velhas mães feiticeiras, as Iá Mi Oxorongá. As pombagiras teriam sido mulheres de má vida; elas desconhecem limites para a ação e são capazes, a fim de atender os desejos de seus devotos e de sua vasta clientela, de fazer o mal sem medir as conseqüências. As famosas pombagiras, os exus femininos, foram em vida mulheres perdidas, prostitutas, cortesãs, companheiras bandidas dos bandidos amantes, alcoviteiras e cafetinas, jogadoras de cassino e artistas de cabaré, atrizes de vida fácil, mulheres dissolutas, criaturas sem família e sem honra. A elas coube sobretudo a fatia da magia relacionada a assuntos amorosos. No fundo, o culto ao panteão dos exus e pombagiras aponta para a redenção de tipos sociais usualmente rejeitados, com a assunção de perversões da alma que se enredam na vida real e na fantasia do homem e da mulher comuns.






Como já disse, a umbanda é resultante de um processo de síntese, de uniformização. A inclusão em seus panteão de personagens dos cultos caboclos regionais teve que obedecer ao modelo dicotômico da direita e da esquerda, e isso provocou transformações radicais em muitas entidades que migraram para a umbanda. Assim Zé Pelintra, por exemplo, que na origem é um mestre do catimbó, foi, no Rio de Janeiro, transmutado em exu, trabalhando para a esquerda. Igualmente Maria Padilha, originalmente também mestra da jurema, foi feita pombagira de renome e sucesso nas giras de quimbanda. Até mesmo a encantada Cabocla Mariana, filha do Rei da Turquia, figura famosa da encantaria do tambor-de-mina, muito festejada tanto Maranhão quanto no Pará (Leacock e Leacock, 1975), viu-se em São Paulo quase transformada em pombagira. O mesmo aconteceu com muitos outros guias espirituais.






Uma vez que a umbanda foi se alastrando pelo Brasil inteiro, os cultos caboclos regionais, que se mantiveram vivos em seus locais de origem, começaram a passar por um processo de umbandização. Hoje, no sertão do Nordeste, quiçá no Brasil todo, é difícil ver um culto de jurema que não seja no interior de um terreiro de umbanda. Até na Bahia, exus da quimbanda dançam em velhos terreiros do candomblé de caboclo (Assunção, 2001; Caroso e Rodrigues, 2001; Shapanan, 2001). Com o grande trânsito que hoje existe em todo o universo religioso afro-brasileiro, personagens como os referidos Zé Pelintra e Maria Padilha retornam aos seus locais de origem completamente transformados.










VI






Mas essa história ainda não terminou. Há algum tempo o pluralismo religioso brasileiro vem se desenvolvendo amplamente, possibilitando a criação de um mercado mágico-religioso em que as religiões afro-brasileiras se expandem e ganham maior visibilidade. Cada vez mais as escolhas religiosas são livres e as religiões ampliam suas ofertas religiosa, adequando-se aos novos tempos, novos mercados, novos gostos religiosos. Por todo lado há novas religiões, novos santos, novos deuses. Nos dias de hoje, a religião tem que se atualizar para poder competir com as outras. A sociedade em permanente mudança impõe um novo movimento de valorização da diversidade cultural. Os antigos cultos caboclos de caráter regional vão também se tornando conhecidos nos mais diferentes rincões do país e suas entidades ganham o status de objetos de culto de âmbito nacional. Caminhos se refazem, personagens se reconstituem. Não é mais tempo de buscar uma identidade brasileira que seja única, homogênea, capaz de representar a nacionalidade num só símbolo, como ocorreu nos anos 20 e 30 do século passado. No final do século XX, alvorecer do XXI, quando a umbanda já é quase centenária, importa agora enfatizar as diferenças, manter as especificidades, festejar o pluralismo.






Nossos personagens sagrados, nossos mestiços espíritos caboclos da umbanda também ganham novas feições nesse novo processo de busca da diversidade, pois é preciso sempre se atualizar. O caboclo e o preto-velho são as entidades fundantes da umbanda e continuam sendo ainda as mais cultuadas. Índio e negro são matrizes tanto do povo brasileiro como dessa religião, mas, já no contexto do Brasil urbano contemporâneo, em que o catolicismo já perdeu cerca de um quarto de seus seguidores e seus modelos de moralidade dual perdem importância na sociedade, outro tipo social vem ganhando cada vez mas adeptos no universo umbandista: o baiano (Souza, 2001). Surgido nas últimas décadas, o baiano já ganhou significativa popularidade. Sua origem mítica remete aos velhos pais-de-santo da Bahia, aos homens negros e mulatos das cidades litorâneas do Brasil, sobretudo migrantes residentes no Rio de Janeiro. São em grande parte personagens da chamada malandragem carioca, pouco afeitos às convenções sociais, mas que não chegam a ser interesseiros e maus-caracteres nem arruaceiros e perigosos como os exus da quimbanda. Nem tampouco são exímios curandeiros como os caboclos ou sábios conselheiros como os pretos-velhos. Estão exatamente na fronteira entre o bem e o mal, apagando essa distinção dicotômica moral. E rapidamente a umbanda vai deixando se fazer distinção entre esses dois lados, o do bem e o do mal, reassumindo a visão africana de que tudo anda junto, tudo é ambíguo e contraditório. Talvez por isso os baianos vêm sendo tão valorizados. Eles são símbolos exemplares do novo caráter de síntese moral umbandista que vai abandonando a dualidade cristã. Assim, apaga-se a fronteira entre a direita e a esquerda, e os exus e as pombagiras vão deixando de ser vistos como entidades perigosas, suspeitas e socialmente indesejáveis, cujo culto devia ser mantido secreto, escondido. Zé Pelintra e Maria Padilha, nossos emblemáticos migrantes, já podem voltar a ser mestres da jurema, simplesmente. A encantada Mariana pode continuar a ser a Bela Turca.






A flexibilidade e a enorme capacidade de adaptação da religião mestiça afro-brasileira estava já, evidentemente, inscrita no seu nascedouro: é esta a herança dos bantos escravizados no Brasil e seus descendentes. Seus seguidores nos dias de hoje já não são mais necessariamente nem bantos e nem negros, mas brasileiros de todas as origens raciais que partilham desse universo religioso mestiço. São adeptos dos encantados caboclos que se reúnem em congressos e seminários para discutir o caráter de suas entidades e guias espirituais e questionar suas raízes, reafirmando sua crença em sua religião. Os fiéis crêem que seus caboclos, mestres e encantados, de todas as origens, seguem em sua dança de transe, abrindo-lhes o caminho na religação deste mundo material e passageiro dos humanos ao mundo eterno e espiritual habitado pelos deuses.










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Bibliografia










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VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.










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Reginaldo Prandi é Professor Titular de Sociologia da Universidade de São Paulo. Em 2001 recebeu o Prêmio Érico Vannucci Mendes, outorgado pelo CNPq, SBPC e Minc, pela sua contribuição à preservação da memória cultural afro-brasileira, e o Prêmio União na Diversidade, conferido pelo Intecab, Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira. Em 2002 teve dois livros indicados para o Prêmio Jabuti: Mitologia dos orixás, na categoria ciências humanas, e Os príncipes do destino, na categoria infanto-juvenil. Publicou também outros livros, como Os candomblés de São Paulo, Herdeiras do axé, Um sopro do Espírito, A realidade social das religiões no Brasil, este em co-autoria com Antônio Flávio Pierucci, Encantaria brasileira, do qual é organizador, e Ifá, o Adivinho.





























quarta-feira, 17 de novembro de 2010

POMBAGIRA NOS CANDOMBLÉS ..... FACES INCONFESSAS DO BRASIL



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 Personagens de duvidosa moralidade
O Brasil tem uma larga tradição católica de devoção aos santos, com os quais os fiéis estabelecem relações de favor e de troca que presumem sempre uma certa intimidade com as coisas do mundo sagrado. (Camargo et al., 1973) Com o espraiamento das tradições afro-brasileiras no curso deste século, parece que essa intimidade com personagens do mundo sagrado - agora sobretudo com divindades afro-brasileiras, com as quais os santos se sincretizam, mais os espíritos dos mortos - ter-se-ia intensificado. De fato, há uma infindável lista de famílias ou classes de entidades sobrenaturais com que fiéis brasileiros podem estabelecer relações religiosas e mágicas e contatos personalizados, especialmente através de cerimônias em que essas entidades se apresentam através do transe de incorporação: os cabo clos, pretos velhos, ciganos, príncipes, marinheiros, guias de luz, espíritos das trevas, encantados, além dos orixás e voduns.
A Pombagira, cultuada nos candomblés e umbandas, é um desses personagens muito populares no Brasil. Sua origem está nos candomblés, em que seu culto se constituiu a partir de entrecruzamentos de tradições africanas e européias. A Pombagira é considerada um exu feminino. O exu, na tradição dos candomblés de origem predominantemente iorubá (ritos Ketu, Efan e Nagô pernambucano), é o orixá mensageiro entre os homens e o mundo de todos os orixás. Os orixás são divindades identificadas com elementos da natureza (o mar, a água dos rios, o trovão, o arco-íris, o fogo, as tempestades, as folhas etc.) e sincretizados com santos católicos, Nossa Senhora e o próprio Jesus Cristo. Assim, Oxalá, o maior dos orixás, divindade da criação, é sincretizado com Jesus, e Iemanjá, a Grande Mãe dos orixás e dos brasileiros, com Nossa Senhora da Conceição. Exu, o orixá trickster, o que deve ser sempre homenageado em primeiro lugar, o orixá fálico, que gosta de confundir os homens, que só trabalha por dinheiro, é aquele sincretizado com o diabo.(1)
Na língua ritual dos candomblés angola (de tradição banto), o nome de exu é Bongbogirá. Certamente Pombagira (Pomba Gira) é uma corruptela de Bongbogirá, e o nome acabou por restringir-se à qualidade feminina de exu (Augras,1989). Na umbanda-formada, nos anos 30 deste século, do encontro de tradições religiosas afro-brasileiras com o espiritismo kardecista francês -, Pombagira faz parte do panteão de entidades que trabalham na "esquerda", isto é, que podem ser invocadas para "trabalhar para o mal", em contraste com aquelas entidades da "direita", que só seriam invocadas em nome do "bem". (Camargo, 1961: Prandi, 1991)
Dona Pombagira, que tem um lugar muito especial nas religiões afro-brasileiras, pode também ser encontrada nos espaços não religiosos da cultura brasileira: nas novelas de televisão, no cinema, na música popular, nas conversas do diaa-dia. Por influência kardecista na umbanda, Pombagira é o espírito de uma mulher (e não o orixá) que em vida teria sido uma prostituta ou cortesã, mulher de baixos princípios morais, capaz de dominar os homens por suas proezas sexuais, amante do luxo, do dinheiro e de toda sorte de prazeres.
No Brasil, sobretudo entre as populações pobres urbanas, é comum apelar-se à Pombagira para a solução de problemas relacionados a fracassos e desejos da vida amorosa e da sexualidade, além de inúmeros outros que envolvem situações de aflição. Estudar os cultos da Pombagira permite-nos entender algo das aspirações e frustrações de largas parcelas da população que estão muito distantes de um código de ética e moralidade embasado em valores da tradição ocidental cristã. Pois para dona Pombagira qualquer desejo pode ser atendido: não há limites para a fantasia humana.
Embora conserve do candomblé a veneração dos orixás, a umbanda, religião que desenvolveu e sistematizou o culto à Pombagira como entidade dotada de identidade própria, é uma religião centrada no culto dos caboclos e pretos velhos, além de outras entidades. Embora o candomblé não faça distinção entre o bem e o mal no sentido judaico-cristão, uma vez que seu sistema de moralidade se baseia na relação estrita entre homem e orixá, relação essa de caráter propiciatório e sacrificial, e não entre os homens como uma comunidade em que o bem do indivíduo está inscrito no bem coletivo (Prandi, 1991), a umbanda, por sua herança kardecista, preservou o bem e o mal como dois campos legítimos de atuação, mas tratou logo de os separar em departamentos estanques. A umbanda se divide numa linha da direita, voltada para a prática do bem e que trata com entidades "desenvolvidas", e numa linha da "esquerda", a parte que pode trabalhar para o "mal", também chamada quimbanda, e cujas divindades, "atrasadas" ou demoníacas, sincretizam-se com aquelas do inferno católico ou delas são tributárias. Essa divisão, contudo, pode ser meramente formal, como uma orientação classificatória estritamente ritual e com frouxa importância ética. Na prática, não há quimbanda sem umbanda nem quimbadeiro sem umbandista, pois são duas faces de uma mesma concepção religiosa.
Assim, estão do lado "direito" os orixás, sincretizados com os santos católicos, e que ocupam no panteão o posto de chefes de linhas e falanges, que são reverenciados mas que pouco ou nada participam do "trabalho" da umbanda, isto é, da intervenção mágica no mundo dos homens para a solução de todos os seus problemas, que é o objetivo primeiro da umbanda enquanto religião ritual. Ainda do lado do "bem" estão o caboclo (que representa a origem brasileira autêntica, o antepassado indígena) e o preto velho (símbolo da raiz africana e marca do passado escravista e de uma vida de sofrimentos e purgação de pecados). Embora religião surgida neste século, durante e em função do processo intenso de urbanização e industrialização, o panteão da umbanda é constituído sobretudo de entidades extraídas de um passado histórico que remonta pelo menos ao século XIX. Ela nunca incorporou, sistematicamente, os espíritos de homens e mulheres ilustres contemporâneos que marcam o universo das entidades do espiritismo kardecista.
De todas as classes de entidades da umbanda, que são muitas, certamente o preto velho é o de maior reconhecimento público: impossível não gostar de um preto velho, mesmo quando se trata de um não umbandista. Ele é sábio, paciente, tolerante, carinhoso. Já o caboclo (o índio) é antes de tudo valente, selvagem; destemido, intrépido, ameaçador, sério e muito competente nas artes das curas. O preto velho consola e sugere; o caboclo ordena e determina. O preto velho acalma, o caboclo arrebata. O preto velho contempla, reflete, assente, recolhe-se na imobilidade de sua velhice e de seu passado de trabalho escravo; o caboclo mexe-se, intriga, canta e dança, e canta e dança como o guerreiro livre que um dia foi. Os caboclos fumam charuto e os preto velhos, cachimbo; todas as entidades da umbanda fumam - a fumaça e seu uso ritual marcando a herança indígena da umbanda, aliança constitutiva com o passado do solo brasileiro.
Do panteão da direita também fazem parte os boiadeiros, os ciganos, as princesas. O boiadeiro é um caboclo que em vida foi um valente do sertão. Veste-se como o sertanejo, com roupa e chapéu de couro, e cumpre um papel ritual muito semelhante ao dos caboclos índios, que se cobrem de vistosos cocares e também são bons curadores. Ciganos, dizem o futuro mas não sabem curar; como os príncipes, estão acima das misérias terrenas. Marinheiros, sabem ler e contar e conhecem dinheiro, o que não acontece com nenhuma outra entidade, mas carregam muitos dos vícios do homem do mar: gostam de mulher da vida, bebem em demasia, são invariavelmente infiéis no amor e caminham sempre com pouco equilíbrio. Uma sua cantiga, imortalizada nas vozes de Clementina de Jesus e Caetano Veloso, diz:
Oh, marinheiro, marinheiro, marinheiro só
Quem te ensinou a nadar, marinheiro só?
Foi o tombo do navio
Ou foi o balanço do mar

Lá vem lá vem marinheiro só
Como ele vem faceiro
Todo de branco, marinheiro só
Com seu bonezinho
O lado da esquerda é povoado pelos Exus e Pombagiras, basicamente. Ambos são mal-educados, despudorados, agressivos. Falam palavrão e dão estrepitosas gargalhadas. Chegam pela meia-noite, os Exus com suas mãos em garras e seus pés semelhantes a cascos de animais satânicos, as Pombagiras com seus trajes escandalosos vermelhos e pretos, sua rosa vermelha nos longos cabelos negros, seu jeito de prostituta, ora do bordel mais miserável ora de elegantes salões de meretrício, jogo e perdição; vez por outra é a grande dama, fina e requintada, mas sempre dama da noite. Nas religiões afro-brasileiras, todo o cerimonial é cantado ao som dos atabaques, geralmente também dançado. As cantigas dos candomblés e os pontos-cantados da umbanda são instrumentos de identidade das entidades. Assim, canta-se para Pombagira quando ela chega incorporada:
De vermelho e negro
Vestida na noite o mistério traz
Ela é moça bonita
Oi, girando, girando, girando lá
Se, por vezes, tanto exus como Pombagiras podem vir muito elegantes e amigáveis, jamais serão, entretanto, confiáveis e desinteressados. Todo mundo tem medo de exu e Pombagira, ou pelo menos diz que tem. Desconfia-se deles, pois, se de fato são entidades diabólicas, não merecem confiança, mesmo quando deles nos valemos. Fazem questão de demonstrar animosidade. Conheci muitos exus que chamam todas as pessoas de "filho-da-puta", que é a maior ofensa que se pode fazer a um brasileiro. Exus e Pombagiras fazem questão de demonstrar o quanto desprezam aqueles que os procuram.
Há ainda um certo território de difícil demarcação que, embora formalmente situado na "direita", dá passagem para muitas entidades que se comportam como da "esquerda". Ora são exus metamorfoseados em caboclos, ora são marinheiros e baianos.
Se com os marinheiros já estamos em território muito próximo da linha da "esquerda", com os baianos é quase impossível saber-se ao certo. Baianos e baianas têm a aparência de caboclos e pretos velhos, mas se comportam como exus e Pombágiras. Lembrando que as giras (sessões rituais de transe com canto e dança) são organizadas separadamente para entidades da direita e da esquerda, pode-se imaginar que os baianos - de criação muito recente, mas com uma popularidade que já quase alcança a dos caboclos e pretosvelhos - são uma espécie de disfarce pelo qual exu e Pombagira podem participar das giras da direita sem serem molestados. Se um dia a umbanda separou o "bem" do "mal", com a intenção indisfarçável de cultuar a ambos, parece que, com o tempo, ela vem procurando apagar essa diferença. Os baianos representariam essa disposição. De fato, os baianos são as entidades da direita mais próximas da esquerda em termos do comportamento estereotipado: são zombeteiros, relacionam-se com seus fiéis e clientes não escondendo seu escárnio por eles, falam com despudor em relação às questões de caráter sexual, revelando com destemperança, para quem quiser ouvir, pormenores da intimidade das pessoas. Um dia, numa gira, uma baiana de nome Chica me disse que a confundiam com Pombagira - coisa que ela não era - só porque preferia os homens sexualmente bem dotados. Dizia que fala muita besteira porque as pessoas gostavam de ouvir besteiras, bebia muito porque as pessoas gostavam de beber, e falava das intimidades porque as pessoas gostavam de se exibir mas não tinham coragem para isso. "E o senhor, não acha que isso é muito bom?", me perguntava. "Então! Porque eu gosto mesmo é de ajudar os outros."
Pombagira no universo dos éxus e dos eguns
Antes de mais nada, Pombagira é um exu, ou melhor, um exu-mulher, como ela mesma gosta de ser chamada. Como exu, compõe um riquíssimo e muito variado panteão de diabos, em que não somente aparece como um dos exus, mas é também casada com pelo menos um deles. Na concepção umbandista, exu é um espírito do mal, um anjo decaído, um anjo expulso do céu, um demônio, enfim. De Pombagira se diz ser mulher de demônios e morar no inferno e nas encruzilhadas, como esclarecem suas cantigas:
A porta do inferno estremeceu
O povo corre pra ver quem é
Eu vi uma gargalhada na encruza
É Pombagira, a mulher do Lucifer
[pesquisa de campo]

Ela é mulher de sete Exu
Ela é Pomba Gira Rainha
Ela é Rainha das Encruzilhadas
Ela é mulher de sete exu
[Molina, s/d, p. 25]

O candomblé tem pouquíssima preocupação em construir um corpo teórico doutrinário e uma organização teológica das suas entidades, e o culto da Pombagira segue de perto o culto dos orixás, assentado em mitos e tradições de origem presumidamente africana, não existindo praticamente nada escrito sobre Pombagira. A umbanda, entretanto, dispõe de vasta bibliografia também sobre Pombagira. Essa literatura desenvolve primariamente a idéia de um panteão sincrético dos exus, dos quais Pombagira é um, e oferece minuciosos preceitos rituais. Há, ainda, discos disponíveis com os pontos cantados.
Segundo essa literatura, a entidade suprema da "esquerda" é o Diabo Maioral, ou Exu Sombra, que só incorpora raramente. Ele tem como generais: Exu Marabô, ou diabo Put Satanaika, Exu Mangueira, ou diabo Agalieraps, Exu-Mor, ou diabo Belzebu, Exu Rei das Sete Encruzilhadas, ou diabo Astaroth, Exu Tranca Ruas, ou diabo Tarchimache, Exu Veludo, ou diabo Sagathana, Exu Tiriri, ou diabo Fleuruty, Exu dos Rios, ou diabo Nesbiros, e Exu Calunga, ou diabo Syrach. Sob as ordens destes, e comandando outros mais, estão: Exu Ventania, ou diabo Baechard, Exu Quebra Galho, ou diabo Frismost, Exu das Sete Cruzes, ou diabo Merifild, Exu Tronqueira, ou diabo Clistheret, Exu da Sete Poeiras, ou diabo Silcharde, Exu Gira Mundo, ou diabo Segal, Exu das Matas, ou diabo Hicpacth, Exu das Pedras, ou diabo Humots, Exu dos Cemitérios, ou diabo Frucissière, Exu Morcego, ou diabo Guland, Exu das Sete Portas, ou diabo Sugat, Exu da Pedra Negra, ou diabo Claunech, Exu da Capa Preta, ou diabo Musigin, Exu Marabá, ou diabo Huictogaras, e o nosso Exu Mulher, Exu Pombagira, simplesmente Pombagira, ou diabo Klepoth. Mas há também os exus que trabalham sob as ordens do orixá Omulu, o senhor dos cemitérios, e seus ajudantes Exu Caveira ou diabo Sergulath, e Exu da Meia-Noite ou diabo Hael, cujos nomes mais conhecidos são Exu Tata Caveira (Proculo), Exu Brasa (Haristum), Exu Mirim (Serguth), Exu Pemba (Brulefer) e Exu Pagão ou diabo Bucons. (Fontennelle, s/d; Bittencourt, 1989;Omolubá, 1990)
Cada Exu tem características próprias, cantigas e pontos-riscados (desenhos feitos a giz com os elementos simbólicos da entidade). Cada um cuida de determinadas tarefas, sendo grande e complexa a divisão de trabalho entre eles. Por exemplo, Exu Veludo oferece proteção contra os inimigos. Exu Tranca Ruas pode gerar todo tipo de obstáculos na vida de uma pessoa. Exu Pagão tem o poder de instalar o ódio no coração das pessoas. Exu Mirim é o guardião das crianças e também faz trabalhos de amarração de amor. Exu Pemba é o propagador das doenças venéreas e facilitador dos amores clandestinos. Exu Morcego tem o poder de transmitir qualquer doença contagiosa. Exu das Sete Portas facilita a abertura de fechaduras, cofres e outros compartimentos secretos - materiais e simbólicos. Exu Tranca Tudo é o regente de festins e orgias. Exu da Pedra Negra é invocado para o sucesso em transações comerciais. Exu Tiriti pode enfraquecer a memória e a consciência. Exu da Capa Preta comanda as arruaças, os desentendimentos e a discórdia.
Pombagira trata dos casos de amor, protege as mulheres que a procuram, é capaz de propiciar qualquer tipo de união amorosa e sexual.
Nos terreiros, os nomes dos demônios são muito pouco conhecidos e me parece que poucos iniciados se interessam por eles. As hierarquias e ordens dos exus também são pouco consideradas. Em geral, seguindo tradições do candomblé e da umbanda, o exu mais importante de um terreiro é o exu do fundador ou do chefe do terreiro, a este se subordinando os exus dos filhos-de-santo, podendo cada iniciado ter mais de um exu. Nos candomblés da nação angola (Prandi, 1991) e na maioria dos terreiros de umbanda, o iniciado tem um exu masculino e uma Pombagira, além do orixá principal, orixá secundário (juntó), caboclo etc. Nessas modalidades das religiões afro-brasileiras, o mesmo iniciado entra em transe de muitas entidades e uma gira muito se assemelha a um grande palco do Brasil, povoado por tipos populares das mais diferentes origens.
Todos os exus são donos das encruzilhadas, onde devem ser depositadas as oferendas que lhes são dadas, porém, dependendo da forma e da localização da encruzilhada, ela pode pertencer a este ou àquele exu. Todas as encruzilhas em forma de T pertencem a Pombagira. A EncruzaMaior, uma encruzilhada em T em que cada uma das ruas que a formam nascem de encruzilhadas também em T, é onde reina a maior das Pombagiras, a Rainha, em respeito à qual nenhuma oferenda destinada a outras Pombagiras pode ser ali depositada, sob o risco de mortal castigo.
Pombagira é singular mas é também plural. Elas são muitas, cada qual com nome, aparência, preferências, símbolos e cantigas particulares. Entre dezenas, as Pombagiras mais conhecidas são:

Pombagira Rainha
Maria Padilha
Pombagira Sete Saias
Maria Molambo
Pombagira da Calunga
Pombagira Cigana
Pombagira do Cruzeiro
Pombagira Cigana dos Sete Cruzeiros
Pombagira das Almas
Pombagira Maria Quitéria
Pombagira Dama da Noite
Pombagira Menina
Pombagira Mirongueira
Pombagira Menina da Praia.

Mas os exus, e mais precisamente muitas Pombagiras, podem também ser considerados eguns, ou seja, espíritos de mortos, alguns de biografia mítica bem popular.
Maria Padilha, talvez a mais popular das Pombagiras, é considerada espírito de uma mulher muito bonita, branca, sedutora, e que em vida teria sido prostituta grã-fina ou influente cortesã. A escritora Marlyse Meyer publicou em 1993 seu interessante livro Maria Padilha e toda a sua quadrilha, contando a história de uma amante de Pedro I (1334-1369), rei de Castela, a qual se chamava Maria Padilha. Seguindo uma pista da historiadora Laura Mello e Souza (1986), Meyer vasculha o Romancero General de romances castellanos anteriores al siglo XVIII, depois documentos da Inquisição, construindo a trajetória de aventuras e feitiçaria de uma tal dona Maria Padilha e toda a sua quadrilha, de Montalvan a Beja, de Beja a Angola, de Angola a Recife, e de Recife para os terreiros de São Paulo e de todo o Brasil. O livro é uma construção literária baseada em fatos documentais no que diz respeito à personagem histórica ibérica e em concepções míticas sobre a Padilha afro-brasileira. Evidentemente não encontra provas, e nem pretende encontrá-las, de que uma é a outra. Talvez um avatar imaginário, isto sim. E que pode, quem sabe, vir a ser, um dia, incorporado à mitologia umbandista.
Autores umbandistas, muitas vezes, conforme suas palavras, orientados pelas próprias entidades, publicam ricas e imaginosas biografias de Pombagira. Assim, Maria Molambo, uma Pombagira que sempre se veste de trapos, teria sido, no final do peíodo colonial brasileiro, a noiva prometida de um influente herdeiro patriarcal que, apaixonada por outro homem, com ele fugiu de Alagoas para Pernambuco. Perseguido incansavelmente pela família ultrajada e desejosa de vingança, o casal foi encontrado três anos e meio depois. O jovem amante foi morto, enquanto a moça era levada de volta ao pai, que cuspiu em seu rosto e a expulsou de casa para sempre. Como tinha uma filha pequena que sustentar, Rosa Maria - este era seu nome - submeteu-se a trabalharem casa de parentes na cidade de Olinda. Com a morte da filha viu-se de novo na rua, prostituindo-se para sobreviver. Tuberculosa e abandonada, foi enfim localizada por parentes para receber a herança dos pais mortos. Rica, ter-se-ia dedicado à caridade até sua morte, quando então, no outro mundo, conheceu Maria Padilha e entrou para a linha das Pombagiras. (Omolubá, 1990)
Embora sejam muitas as versões sobre a personagem Pombagira, ela sempre aparece relacionada à prostituição, como sugere esta cantiga:

Disseram que iam me matar
Na porta do cabaré
Passei a noite lá
E ninguém me matou
[pesquisa de campo]
Seu caráter de entidade perigosa e feiticeira, com a qual se deve tomar muito cuidado, também é sempre marcado:

Pombagira é a mulher de sete maridos
Não mexa com ela
Ela é um perigo
[pesquisa de campo]
Pombagira girou
Pombagira girou no congá da Bahia
Pombagira vem de longe
pra fazer feitiçaria
[pesquisa de campo]
Pombagira vem sempre para trabalhar e trabalharcontra aqueles que são seus inimigos e inimigos de seus devotos. Considera seus amigos todos aqueles que a procuram necessitando seus favores e que sabem como agradecer-lhe e agradá-la. Deve-se presentear Pombagira com coisas que ela usa no terreiro, quando incorporada: tecidos sedosos para suas roupas, nas cores vermelho e preto, perfumes, jóias e bijuterias, champanhe e outras bebidas, cigarro, cigarrilha e piteiras, rosas vermelhas abertas (nunca botões), além das oferendas de obrigação - os animais sacrificiais (sobretudo no candomblé) e os despachos deixados nas encruzilhadas, cemitérios e outros locais, a depender do trabalho que se faz, sempre iluminados por velas vermelhas, pretas e, às vezes, brancas.
Para ser-se amigo e devoto de Pombagira é preciso ter uma causa pela qual ela possa trabalhar, pois é o feitiço que a fortalece e lhe dá prestígio:

Demandas ela não rejeita
Ela gosta de demandar
Com seu garfo formoso
Seus inimigos gosta de espetar
[Omolubá, 1990, p. 70]

Eu quero filho pra defender
E amigos pra espetar
Eu é Rainha das Sete Encruzilhadas
É lá que eu faço a minha morada
[ibidem, p. 71 ]
Não há mãe-de-santo ou pai-de-santo que admita trabalhar para o mal. O mal, quando acontece, é sempre uma conseqüência do bem, pois as situações que envolvem os exus são sempre situações contraditórias. (Trindade, 1985) Se uma mulher está apaixonada por um homem comprometido e procura ajuda no terreiro, a única responsabilidade da mãe-de-santo e da Pombagira é a de atender à súplica de quem faz o pedido. Se a outra mulher tiver que ser abandonada, a culpa é dela mesma, que não procurou a proteção necessária, não tendo assim propiciado as entidades que a deveriam defender. Quando duas ou mais pessoas estão engajadas em pólos opostos de uma disputa, declara-se acirrada demanda (disputa, guerra) entre os litigantes humanos e seus protetores sobrenaturais. As demandas que envolvem questões amorosas são um campo específico de atuação da Pombagira. Questões de bem e de mal são irrelevantes:
Ela é Maria Padilha
De sandalhinha de pau
Ela trabalha para o bem
Mas também trabalha para o mal.
[ibidem, p.70]
Pombagira, como praticamente todas as entidades que baixam nos terreiros de umbanda, sempre vem para trabalhar, isto é, ajudar através da magia a quem precisa de ajuda e vaiem busca dela. O conceito de "trabalho", isto é, uma prática mágica que interfere no mundo, é central na umbanda e na construção de suas entidades. (Prandi, 1991; Pordeus Jr., 1993) Há sempre um grande número de pontos-cantados que se referem a essa "missão", como este:

É na banda do mar
E, é, é na umbanda
Vem, vem da quimbanda
Pombagira vem trabalhar
[Molina, p.55]
Pombagira, entretanto, não vive só de feitiços, ela não vem só para "trabalhar". Nas grandes festas de exu e Pombagira, especialmente nos terreiros de candomblé em que há o costume de se oferecer apenas uma grande festa anual para essas entidades, Pombagira vem para se divertir, dançar e ser apreciada e homenageada, conforme o padrão do culto aos orixás, os quais jamais dão consultas, conselhos ou receitas de cura durante o transe de possessão. Um toque de pombagira sempre tem o clima de festa e diversão, apesar do clima geralmente sombrio e das expressões muito estereotipadas do transe. (Arcella, 1980) É assim que Pombagira se expressa nessas ocasiões:

Com meu vestido vermelho
Eu venho pra girar
Com meu colar, brinco e pulseira
Eu venho pra girar

Eu uso os melhores perfumes
Para a todos agradar
Eu sou a Pombagira
Eu venho pra girar

Este é o meu destino
O meu destino é este
É me divertir
Bebo, fumo, pulo e danço
Pra subsistir
Assim cumpro o meu destino
Que é me divertir
[pesquisa de campo]
Sempre se diz que quem é amigo de Pombagira alcança todos os seus favores, mas quem é seu inimigo corre sério risco. Em decorrência, é muito freqüente, entre os adeptos, atitudes de medo e respeito para com Pombagira, mesmo quando dela não se pretende qualquer favor:

Quem não me respeitar
Oi, logo se afunda
Eu sou Maria Padilha
Dos sete cruzeiros da calunga

Quem não gosta de Maria Padilha
Tem, tem que se arrebentar
Ela é bonita, ela é formosa
Oh! bela, vem trabalhar.
[Ribeiro, 1991, p. 84]
Não é raro o envolvimento da Pombagira em casos de polícia e seu aparecimento em reportagens, novelas e séries de televisão. Num desses notórios casos, ocorrido no Rio de Janeiro em 1979 e amplamente discutido na literatura antropológica (Contins, 1983; Contins & Goldman, 1995; Maggie, 1992), um homem foi assassinado a mando da mulher por causa da sua suposta impotência sexual. Entre os envolvidos no crime havia uma mulher que recebia Pombagira, que teria fornecido pós e trabalhos mágicos para o assassinato, mas como os pós e trabalhos mágicos não haviam dado certo, a própria Pombagira teria sugerido, conforme depoimentos dos implicados, o uso do revólver. O comerciante foi morto a tiros desfechados por uma outra mulher, depois do fracasso de um jovem faxineiro. Durante os trâmites na polícia e no judiciários, além dos personagens em carne e osso compareceu Pombagira, em transe. Acodem, a pedido das autoridades, um psiquiatra, um pai-de-santo e um pastor evangélico. Os envolvidos acabam condenados. O caso, além do enorme interesse popular despertado, ensejou a produção dos mais variados discursos sobre a Pombagira (ou sua participação no crime): o mágico-religioso, o jornalístico, o jurídico, o psiquiátrico e o antropológico. Como o povo que certamente ela representa e simboliza, dona Pombagira, nesse caso, não se esgota em nenhuma dessas fontes de explicação, populares ou eruditas. Mas fica bem claro que, ainda que Pombagira seja uma entidade espiritual de baixo nível hierárquico de religiões de baixo prestígio social, sua presença no imaginário extravasa os limites dos seus seguidores para fazer-se representar no pensamento das mais diversas classes sociais do país.
O que Pombagira pode fazer pelos mortais? Favores e oferendas
Pode-se pedir de tudo à Pombagira, como a qualquer divindade ou entidade afro-brasileira, mas sua fama está muito colada às questões de afeto, amor e sexualidade.
Quando se recorre à Pombagira, busca-se o conforto de três maneiras: 1) consultando-se com ela durante uma gira ou toque, em que ela está presente pelo transe, em sessões que ocorrem muito tarde da noite, geralmente às sextas-feiras; 2) em contato com ela em sessão reservada, geralmente à tarde, quando o terreiro oferece consultas privadas; 3) tendo o pai ou mãe-de-santo como intermediador, que podem usar o jogo de búzios, oráculo dos orixás (Prandi, 1994), o que acontece quando se trata de terreiro mais próximo de práticas do candomblé. A um pedido sempre corresponde algum tipo de oferenda. Vejamos, a título de ilustração, três fórmulas para se alcançarem favores de Pombagira.
1) Oferenda para Pombagira Cigana prender um homem ao lado de uma mulher para sempre: Perto da meia-noite, numa encruzilhada em forma de T, depois de pedir licença ao dono supremo de todas as encruzilhadas, exu, recitar ou cantar dois pontos de Pombagira e depois arriar, sobre uma toalha de cores vermelho e preto, um batom, um par de tamancos, um par de brincos, sete velas vermelhas, uma garrafa de cachaça, vinho ou champanhe, sete fitas vermelhas e sete rosas vermelhas. Fazer o pedido e se afastar de costas. (Alkimin, 1993, p. 26)
2) Oferenda a Pombagira Sete Saias para transformar uma inimiga em grande amiga: Preparar uma farofa de farinha de mandioca crua misturada com mel e arrumar no centro de um alguidar (prato de barro). Em volta colocar sete velas brancas, sete fitas de cores diferentes, sete rosas vermelhas, uma garrafa de champanhe e uma cigarrilha. Arriar numa encruzilhada em T, depois de pedir licença a exu, numa noite de sábado ou segunda-feira. (ibidem, p. 34)
3) Trabalho para Pombagira Calunga do Mar para despertar o interesse sexual de um homem: Numa meia-noite de segunda-feira arriar na praia, depois de pedir licença a Ogum Beira-Mar e Iemanjá, um prato de barro contendo um limão, um maço de cigarros, sete contas de porcelana, um pente e um batom. Entrar na água e entregar, uma a uma, doze rosas amarelas. Junto ao prato, acender sete velas vermelhas. (ibidem, p. 42)
A umbanda praticamente eliminou o sacrifício ritual, por isso Pombagira tem sua "dieta" limitada aos seguintes alimentos: farofa de farinha de mandioca com azeite de dendê e pimenta, que é o padê, comida predileta de Exu; farofa de farinha de mandioca com mel; aguardente, vinho branco ou champanhe (cidra, uma espécie de champanhe barata feita de maçã); carne crua com azeite de dendê e pimenta; farofa com carne-seca desfiada e pimenta; coração de boi assado na brasa, com sal e pimenta. No candomblé, entretanto, Pombagira recebe sacrifício votivo de galinhas pretas e, quando se pretende atingir objetivos mais difíceis, de cabras pretas e novilhas. Na umbanda a oferenda de alimento preferencialmente vai para um lugar fora do terreiro (encruzilhada, praia etc.), mas no candomblé as comidas são depositadas ao "pé da Pombagira", isto é, junto às suas representações materiais compostas de boneca de ferro (geralmente com chifres e rabo, como o diabo), tridentes arredondados de ferro, lanças de ferro e correntes (elementos presentes também nos pontos-riscados), representações que permanecem guardadas, longe dos olhos dos não iniciados, nas dependências reservadas para o culto de exu.
Descobrir qual é a oferenda certa para agradar Pombagira e assim conseguir o favor almejado representa sempre um grande desafio para os pais e mães-de-santo que presidem os cultos. O prestígio de muitos deles vem da fama que alcançam por serem considerados, por seguidores e clientes, bons conhecedores das fórmulas corretas para esse agrado.
Conclusão: o mundo de Pombagira e dos exus e o mundo dos homens
Se tanto os exus masculinos como os variadíssimos avatares, formas e invocações de Pombagira, o Exu-Mulher, estão sincretizados com o demônio católico, no dia-a-dia dos terreiros esse dado tem importância muito secundária. Esses diabos nem são tão maus e nem seu culto soa estranho para os fiéis. Penso que ninguém se imagina fazendo alguma coisa errada ao invocar, receber em transe, cultuar ou simplesmente interagir com Pombagira. Quando um devoto invoca exu e Pombagira, dificilmente tem em mente estar tratando com divindades diabólicas que impliquem qualquer aliança com o inferno e as forças do mal. Na verdade, o que se observa é uma grande intimidade com os exus, aponto de os fiéis a eles se referirem carinhosamente e muito intimamente como "os compadres".
Nos terreiros de umbanda e nos candomblés que cultuam as formas umbandizadas de exu, a concepção mais generalizada de Pombagira é de que se trata de uma entidade muito parecida com os seres humanos. Ela teria tido uma vida passada que espelha certamente uma das mais difíceis condições humanas: a prostituição. Mas é justamente essa condição que lhe permitiu total conhecimento e domínio de uma das mais difíceis áreas da vida das pessoas comuns, que é a vida sexual e o relacionamento humano fora dos padrões sociais de comportamento aceitos e recomendados. Assim, acredita-se que Pombagira é dotada de uma experiência de vida real e muito rica, que a maioria dos mortais jamais conheceu, e por isso seus conselhos e socorros vêm de alguém que é capaz, antes de mais nada, de compreender os desejos, fantasias, angústias e desesperos alheios.
Para Monique Augras, Pombagira representa uma espécie de recuperação brasileira de forças e características de divindades africanas que, no Brasil, no contato com a civilização católica, teriam passado por um processo de "cristianização". Ela está se referindo às Grandes Mães, as poderosas e temidas Iyami Oshorongás dos Ioruba, quase esquecidas no Brasil, e Iemanjá, que ao se aclimatar no Novo Mundo perdeu muitos de seus traços originais, modelando-se a um sincretismo com Nossa Senhora que a tornou uma mãe quase assexuada, muito diferente da figura africana sensual, envolvida em casos de paixões avassaladoras, infidelidade, incesto e estupro. (Augras, 1989)
Com Pombagira, no plano do ritual desenvolvido para se atuar no controle do cotidiano, assegura-se o acesso às dimensões mais próximas do mundo da natureza, dos instintos, aspirações e desejos inconfessos, o que aqui estou chamando de faces inconfessas so Brasil. O culto de Pombagira revela, de modo muito explícito, esse lado "menos nobre" da concepção popular de mundo e de agir no mundo entre nós, o que é muito desautorizador dos estereótipos de brasileiro cordial, bonzinho, solidário e pacato. Com Pombagira, guerra é guerra e salve-se quem puder.
Devemos lembrar-nos que as religiões afrobrasileiras são religiões que aceitam o mundo como ele é. Este mundo é considerado o lugar onde todas as realizações pessoais são moralmente desejáveis e possíveis. O bom seguidor das religiões dos orixás deve fazer todo o possível para que seus desejos se realizem, pois é através da realização humana que os deuses ficam mais fortes e podem assim mais nos ajudar. Esse empenho em ser feliz não pode enfraquecer-se diante de nenhuma barreira, mesmo que a felicidade implique o infortúnio do outro. De outro lado, o código de moralidade dessas religiões, se é que é possível usar aqui a idéia de moralidade, estabelece uma relação de lealdade e reciprocidade entre o fiel e suas entidades divinas ou espirituais, nunca entre os homens como comunidade solidária. (Prandi, 1991) Na própria constituição dessas religiões no Brasil, o culto dos ancestrais (egunguns) como a dimensão religiosa controladora da moralidade, tal como na África de então e sobretudo nas regiões de cultura iorubá, foi, em grande parte, perdido, primeiro porque a moralidade no mundo escravista estava sob o controle estrito do mundo do branco, com sua religião católica, esta sim a grande fonte de orientação do comportamento; segundo porque a escravidão desagregava a família e destruía as referências clânicas e tribais, essenciais no culto do ancestral egungun. Vingou, das religiões negras originárias, o culto dos orixás (e voduns e inquices, estes diluídos e substituídos pelos orixás), centrado na pessoa e na idéia já contemporânea de reforçamento da individualidade através do sacrifício iniciático, no candomblé, e depois pela troca clientelística, na umbanda. De fato, as religiões afro-brasileiras espelham muito as condições históricas de sua formação: religiões de subalternos (primeiro os escravos, depois os negros livres marginalizados, mais tarde os pobres urbanos), que se formam também como religiões subalternas, isto é, no mínimo, religiões tributárias do catolicismo, que até hoje, em grande medida, aparece como a religião que dá identidade ao seguidores dos cultos afro-brasileiros. Quando as-religiões dos orixás e voduns eram religiões de grupos negros isolados (mais ou menos até quarenta ou cinqüenta anos atrás), o catolicismo-além de ser a face voltada para o mundo branco exterior, dominante e ameaçador, era ainda o elemento que, tendo o sincretismo como instrumento operador, rompia com esse isolamento sócio-cultural para fazer de todos, mais que negros, participantes de uma identidade nacional: ser brasileiro. Mais tarde, quando as religiões afro-brasileiras romperam com as barreiras de cor, geografia e origem, produzindo-se suas novas modalidades de caráter universalizado, agora religiões para todos, independente de cor e geografia (Prandi, 1991), ainda que esse "todos" refira-se majoritariamente aos pobres, a persistência do sincretismo católico passou a indicar uma dependência estrutural dessas religiões para com as fontes axiológicas mais gerais referidas à sociedade brasileira. Ainda é o catolicismo que diz o que é certo e o que é errado quando se trata de pensar a relação com o outro. Quando se busca, contudo, romper momentaneamente com o código do que é certo e errado, as religiões afro-brasileiras não têm objeção a apresentar, desde que se preservem as prerrogativas das divindades. Mas a ruptura só pode ser momentânea e em casos particulares, mesmo porque qualquer ruptura definitiva acarretaria uma separação não somente no âmbito da religião, como no domínio mais geral da vida em sociedade.
Não é de se estranhar, portanto, que o culto a Pombagira faça parte do lado mais escondido das religiões afro-brasileiras, conhecido sobretudo pelo nome de quimbanda, pois as motivações básicas do culto também pertencem a dimensões do indivíduo muito encobertas pelos padrões de moralidade da sociedade ocidental-cristã. Nem é de se estranhar que tenha sido a umbanda que melhor desenvolveu essa entidade, pois foi a umbanda, como movimento de constituição de uma religião referida aos orixás e aos pactos de troca homem-divindade e ao mesmo tempo preocupada em absorver a moralidade cristã, que separou o bem do mal, sendo portanto, obrigada a criar panteões separados para dar conta de cada um. Mas se, formalmente, a umbanda separou o mundo dos "demônios", ela nunca pôde dispor deles nem trata-los como entidades das quais só nos cabe manter o maior afastamento possível, sob pena de perdição e danação eterna. Porque a umbanda nunca se cristianizou, ao contrário do que pode fazer entender a idéia de sincretismo religioso: ela reconhece o mal como um elemento constitutivo da natureza humana e o descaracteriza como mal, criando todas as possibilidades rituais para sua manipulação a favor dos homens.
Por tudo isso, diz-se que as religiões afrobrasileiras são religiões de liberação da personalidade, pois não faz parte nem de seu ideário nem de suas práticas rituais o acobertamento e o aniquilamento das paixões humanas de toda natureza, por mais recônditas que elas sejam. Isso é exatamente o oposto do que pregam e praticam as religiões pentecostais, que são o grande antagonista do candomblé e da umbanda nos dias de hoje, aponto de declararem a estas uma espécie de guerra santa que pervade, com intransigência e uso freqüente da violência física, as periferias mais pobres das grandes cidades brasileiras. (ver Fry, 1975)
Mas se as religiões afro-brasileiras são, nesse sentido, liberadoras do indivíduo, o fato de sobrevalorizarem a relação homem-entidade e darem pouca importância aos valores de solidariedade é justiça social faz com que dotem seus seguidores de uma especial abordagem mágica e egoísta do mundo, desinteressando-os da possibilidade de ações no sentido de transformação do mundo é de uma conseqüente participação política importante, num contexto como o brasileiro, para a promoção de qualquer idéia mais sólida e solidária de liberdade. (Prandi, 1993)
Na luta dos homens e mulheres brasileiros que procuram o mundo dos Exus para a realização de seus anseios mais íntimos – homens e mulheres que são em geral de classes sociais médias, baixas e pobres, quase sempre de pouca escolaridade e reduzida informação e para quem as mudanças sociais têm trazido pouca ou nenhuma vantagem real na qualidade de suas vidas –, dona  Pombagira representa sem dúvida uma importante valorização da intimidade de cada um, pois para ela não existe desejo ilegítimo ou aspiração inalcançável ou fantasia reprovável. Como se existisse um mundo de felicidade, cujo acesso ela controla e governa, que fosse exatamente o contrário do mundo frustrante do nosso cotidiano.

JOÃO CARLOS MARUJO