terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A COMIDA E O COMER NO CANDOMBLÉ....

COZINHA, OS ORIXÁS E OS TRUQUES: ENTRE A INVENÇÃO E A RECRIAÇÃO ONDE O TEMPO NÃO PÁRA…

 
A comida e o comer ocupam um lugar fundamental na vida dos terreiros de Candomblé. Isso aparece explicado de várias formas, através de uma visão muito ampla, onde ela é entendida como força vital, energia, princípio criativo e doador de algo. Na comida, encontra-se a energia máxima de uma oferta, mas, acima de tudo, ela é a força que fortifica os ancestrais, então, é um meio, um veículo através do qual, grupos humanos e civilizações, se sustentaram durante milênios fazendo contrato com o Sagrado.

No terreiro, a chamada comida de Orixá obedece a prescrições complexas construídas ao longo do tempo e redefinidas a cada momento, de acordo com a função que deva desempenhar ou à “realidade” que deseje instaurar ou dialogar. Tudo isso é expresso nas múltiplas formas, maneiras e diferentes modos de preparar, fazer ou de “tratar” os ingredientes.

Comida é sacrifício, ebó[1] no seu sentido mais amplo, mola propulsora que conduz e leva o Axé[2]. Daí sua íntima relação com Exu, aquele que come tudo, encarregado de sua distribuição no mundo. O sacrifício é, asssim, indispensável para viver, pois nada se sustenta sem esta troca de força, de energia, sem essa reposição, num universo onde tudo é dinâmico e nada acontece por acaso. Onde até uma folha que se desprende da árvore tem um por que preciso

Através da comida oferecida aos Orixás, se estabelecem relações entre o devoto, a comunidade e o Orixá. É sobretudo nas festas que isso mais se expressa. Festas que se desenrolam ocultamente aos olhos dos de fora, que podem levar meses e festas que são feitas para os de fora, realizadas no barracão, tornadas públicas, onde, em algumas delas, são exibidas a maior quantidade possível de comidas servidas aos Orixás da casa, e eles próprios servem a sua comida, distribuindo, assim, aos presentes a sua força máxima.

Por traz de cada prato ofertado há uma visão de mundo, um porque, que faz com que o comer instaure um sistema de prestações e de contraprestações que englobam a totalidade da vida. Comida é sempre um contra presente.

A comida de Orixá difere, assim, das comidas servidas no dia a dia do terreiro, bem como daquelas passadas no corpo das pessoas, usadas para “descarregar”, limpar, livrar de algum contra-axé[3]

Em linhas gerais, comida é tudo que se come. Desde à pimenta e o obi[4] que se masca para conversar com o Orixá, ao naco de carne oferecido a este mesmo Orixá, partilhado pela pessoas. Nesse processo de diferenciação, em que os ingredientes, na sua grande maioria, são os mesmos, muda-se a forma de ritualizar, a elaboração, o cuidado, “o tratamento”, a maneira de lidar com o mesmo ingrediente, o sentido impresso e invocado através das palavras de encantamento, cantigas e rezas.

Assim, falar sobre esta comida, suas relações, circunscrevê-la dentro de um espaço, momento, consiste num dos nossos principais desafios. Enfrentá-lo, é o que tentamos fazer sob o título: A Cozinha, os Orixás e os truques: entre a invenção e recriação onde o tempo não pára…O segredo desta culinária é comandado pela guardiã da cozinha, a Yabassê. Aquela que “muito faz e pouco fala.” Quando se fala da sacerdotisa da comida, as formas mais antigas de transmissão do conhecimento trazida pelas diversas etnias africanas vão ser evocadas: a observação e a convivência. E o mestre dos mestres será mais uma vez chamado: o tempo. O conhecimento ritual, o respeito, a criatividade e o comando apresentam-se como o perfil da Yabassê e orientam à sua escolha, mesmo que, hoje, nos “novos tempos,” poucas sejam as mulheres que se disponham a tal cargo; não pelo gosto, mas pelas funções assumidas por elas na sociedade

A imagem da Yabassê apresentada pelos sacerdotes, remonta aos primórdios, quando Olodumaré, Deus, entregou o poder de criar e de tudo transformar às Grandes Mães. A velha que cozinha, divide, assim com o poder ancestral feminino esta força, assim como todas as mulheres. Daí recair sobre ela o tabu da impureza, que reflete as relações de poder, as tensões entre homem e mulher expressas em alguns mitos da sociedade yorubá, num ambiente onde embora sua função seja de procriar, ela goza de plena liberdade e independência dentro do grupo. Permitir que a mulher menstruada manipule a comida é expor toda a comunidade ao poder das Mães Ancestrais, que serve tanto para o bem, quanto para o mal. A Yabassê é, uma das pessoas que no terreiro, mais expressa essa força, pois trabalha com ela dia e noite, ao manipular a colher de pau para transformar grãos e alimentar tudo e todos, conservando, recriando e inventando...“CANDOMBLÉ MESMO É COZINHA…

Dentro do universo do Candomblé, a cozinha merece uma atenção especial, por ser um dos espaços onde se passa e se constitui o sagrado. Tudo nela remete a esta dimensão. Assim, “A cozinha de santo” aparece sempre como algo distinto, separado da cozinha do dia a dia. Separada na sua grande maioria, não por limites externos, mas internos que são representados por mudanças de atitude, ações, formas de uso, etc.

Em muitos terreiros de Candomblé, o local onde são preparadas as comidas dos Orixás é o mesmo onde são feitas as comidas do dia a dia. Esta separação, todavia é realizada de forma bastante visível e determinada. Muitas vezes se reserva para as comidas de santo um fogão especial que pode ser de lenha ou industrial, enquanto a outra permanece num fogão menor. Comum é se trocar de horários. É muito difícil se mexer com as panelas dos Orixás ao lado de outras panelas, bem como misturar os utensílios destas duas cozinhas.

“ Cozinha do santo” é, assim, mais que um lugar determinado que, em terreiros de estrutura maior, os mais antigos, se tem para preparar somente os pratos dos Orixás e, sim, um espaço criado e redefinido a cada momento, no terreiro, através da separação dos objetos, utensílios e mudanças de comportamento. Tudo participa do sagrado: o espaço em si , as panelas, travessas, pratos, bacias, cestos, peneiras, colheres de pau, ralos, o pilão, as frigideiras e as pessoas que nela transitam;;; A cozinha é cheia de interdições como: não conversar mais que o necessário, não falar alto, gritar, cantar ou dançar músicas que não sejam do santo; não entrar pessoas que não sejam iniciadas-dependendo do que se estiver fazendo, somente um número muito restrito-não admitir que mulheres menstruadas permaneçam nela, etc. Neste espaço sacralizado, tudo vai ganhando significado: a bacia que cai, o garfo, a faca, a colher, o óleo que faz fumaçar o fogo, etc. Na cozinha se aprende além do “ponto” certo de determinado prato, que não se dá as costas para o fogo, não se joga sal no chão, não se mexe comida de Orixá com colher que não seja de pau, que a comida mexida por duas pessoas desanda, que não se joga água no fogo e que muitas pessoas por terem o sangue ruim fazem a comida desandar. Ou que a presença de pessoas de um determinado Orixá faz com que uma certa comida não dê certo, como por exemplo: em cozinha onde se tem gente de Xangô o milho de pipoca queima antes de estourar. Pela cozinha, entram as pessoas de maior prestígio na Religião e é nela própria que, em certas ocasiões, muito antes mesmo de se chegar no peji do Orixá, que este é consultado a fim de se saber se a comida foi bem preparada ou não. Embora marcada por vários limites, a cozinha é mesmo escola mestra, local onde se aprende as lições mais antigas, através do exercício longo e paciente da observação. Local onde permanecem por maior período de tempo os iniciados, seja varrendo, lavando, limpando, guardando, acendendo ou mantendo o fogo, cozinhando, com olhos e ouvidos atentos a tudo que se passa nela. Daí entende-se o dizer corrente: Candomblé mesmo é cozinha!!!” Talvez por ser ela mais que um local de transformação e sim de passagem e transmissão de conhecimento, por onde transita algo essencial que ultrapassa os limites das oposições por situar-se no mais intimo e profundo ser do homem: o comer



BIBLIOTECA: COZINHA DE SANTO










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